Tema que envolve avaliações éticas, morais, religiosas e legais, a eutanásia entra em debate .
O caso da norte-americana Terri Schiavo e os exemplos de alguns recentes filmes que tratam a questão - como "Mar Adentro", "Menina de Ouro" e "Invasões Bárbaras" - trouxeram de volta ao cenário internacional e às discussões diárias da sociedade a polêmica sobre a eutanásia.
Para entender um pouco melhor o que eutanásia significa, conheçamos a etmologia da palavra, que no grego significa algo como "boa morte". A idéia básica é que por meio da ação ou omissão no tratamento de uma pessoa doente ou incapacitada permita-se que ela chegue à morte de uma forma considerada digna, tendo-se em perspectiva a redução de seu sofrimento em vida, como pregou o filósofo Francis Bacon em sua obra, ao cunhar o termo eutanásia no século XVII.
No entanto, o mesmo termo já foi utilizado como política de estado, que posteriormente viria a ser considerado um crime contra a humanidade. ? o caso do regime nazista na Alemanha - antes e durante a II Guerra Mundial. O Estado alemão de então estabelecia legalmente que pessoas com incapacidades crônicas e profundas viessem a ser mortas em prol do bem-estar de toda a sociedade. Estes eram os casos de crianças com deficiências mentais severas para as quais o Estado considerava que o mais apropriado seria terminar com suas existências em vez de investir recursos que poderiam ser utilizados de forma mais "útil" para sociedade.
Essa lógica foi estendida àqueles os quais o regime nazista considerava pessoas inferiores, como dos judeus, ciganos e homossexuais, entre outros. Com isso, tivemos o triste episódio do holocausto, como foi conhecido o extermínio pelas forças alemãs de milhões de pessoas desses grupos durante a guerra e a ocupação dos países europeus pelos alemães.
Essa carga negativa associada ao termo eutanásia até hoje é considerada no momento em que surgem as discussões sobre o tema. "Eutanásia é um nome simbolicamente carregado e com uma conotação quase criminosa", lembra o médico psiquiatra Sérgio Zaidhaft, presidente da Comissão de Bioética do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), o Hospital do Fundão. "Mas o nome eutanásia, na verdade, ficou restrito a qualquer procedimento direto ou indireto, ativo ou passivo que propicie um término de vida para alguém que está num processo de morrer, que será levado à morte em um tempo relativamente curto", acrescenta o médico.
Tais discussões, logicamente, envolvem conceitos legais, sociais, éticos, religiosos e até políticos. Como todos esses campos envolvem observações e ponderações subjetivas e pessoais, o entendimento entre as diversas posições se torna quase impraticável.
Mesmo assim, como no atual momento, a sociedade se vê obrigada a tratar de temas sensíveis como este. A verdade é que a evolução do homem só se dá diante do choque de opiniões, do processo de discussão sobre os mais variados temas, da deliberação sobre o que é melhor para a sociedade e para o indivíduo e da experimentação se aquilo que foi decidido é de fato o conceito mais correto a ser seguido, o que gera um novo ciclo que começa das discussões e segue adiante.
Legislação
Como lembra o advogado e jurista Ives Gandra da Silva Martins, a eutanásia não está especificamente tipificada no Direito Penal brasileiro. No entanto, a jurisprudência trata a sua prática como crime de assassinato. "A legislação brasileira não permite a eutanásia", lembra o advogado, citando o artigo 5º da Constituição Nacional e o artigo 4º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, mais conhecida como Pacto de São José, do qual o Brasil é signatário.
Segundo Gandra Martins, a legislação brasileira estabelece que deve-se preservar a vida e para isso todos os esforços devem ser adotados.
No entanto, o jurista tem uma posição bastante controversa em relação a uma atitude que, por muitos, é considerada eutanásia: "Quando a pessoa não tem condições de viver pelos meios naturais, quando seus órgãos não conseguem funcionar sem a ajuda de aparelhos, desligar esses aparelhos não é eutanásia, pois está-se mantendo a vida artificialmente. Um médico desligar os aparelhos de uma pessoa que é completamente dependente deles para sobreviver, que está em coma profundo, por exemplo, ou seus órgãos não funcionam mais sozinhos, não está praticando eutanásia, já que a pessoa não tem a condição de auto-sobrevivência".
Para Gandra Martins, "o homem não tem o direito de tirar a vida do seu semelhante. Mas desligar aparelhos não é matar. Não há polêmica porque não há choque nenhum com o direito canônico ou o direito natural. O direito à vida é se manter vivo com os próprios meios". Ele considera que ao desligar um aparelho, está-se simplesmente deixando que a vida tome seu rumo natural, sem a atuação artificial de tal equipamento.
Essa visão não é, por exemplo, compartida por Sérgio Zaidhaft. "Depois que você coloca o indivíduo num aparelho, vir a desligá-lo, isso no Brasil, a legislação diz que é um crime. Não pode. Mesmo um ato misericordioso, o Código Penal fala em, se não me engano, seis anos de reclusão. Há um anteprojeto que está desde 1998 tramitando no Congresso em que o chamado crime misericordioso deixaria de ter essa pena tão extensa. O juiz poderia considerar que como foi um ato de misericórdia, seja médico ou familiar, que isso teria uma redução por sursis, algo nesse sentido", afirma o médico.
E acrescenta: "No Brasil isso (a eutanásia) não é permitido, não é legal fazer isso. Em outros países do mundo, como Holanda, Bélgica, Suíça, há a permissão de um ato em que um médico a pedido de um paciente, depois de avaliado por vários médicos, uma junta médica que perceba que realmente não há mais retorno na situação de saúde ou de qualidade de vida, o médico está autorizado a praticar essa chamada eutanásia ativa. Isso apenas nesses três países".
"No nosso país, você é dono do seu corpo, tem autonomia para resolver tudo o quiser fazer com você até o momento que correr risco de vida. Se você corre o risco de vida, seu corpo não lhe pertence mais, pertence ao Estado, logo, à Medicina, na qual vigora a sacralidade da vida, em que a vida, sendo sagrada, ninguém tem direito de tirá-la sob qual alegação for", acrescenta Zaidhaft.
Discussões
Na realidade, a própria formatação de nosso Direito é fruto das profundas divergências geradas nas discussões sobre a eutanásia. Parte da explicação para um aparente conservadorismo no trato do tema estaria na origem e formação de nossa própria sociedade, com seus fundamentos baseados na cultura cristã, que prega o máximo apego à vida e a sua preservação. Mas há também outros fatores que contribuem para a manutenção da atual compreensão oficial e legal da eutanásia, como o temor de que atos injustificáveis sejam praticados por alguns em nome de eventuais benefícios à sociedade ou a individualidades.
Obviamente uma pessoal que está vivendo em sofrimento, em um certo sentido se justifica que ela peça a morte. Dá para a gente entender. Por que ela está pedindo a morte? Porque está sofrendo. Agora, o sofrimento tem várias dimensões. Eu caracterizaria pelo menos duas delas: uma é o sofrimento físico - estar sentindo dor ou coisas que o valham - e a questão da dor física é médica e vai encontrar na Medicina respostas para muitas dessas condições, senão para todas; mas sabemos que a questão do sofrimento não se reduz só à dor física, porque o grande sofrimento pode existir por um total perda de sentido do significado da vida. Existe aí um componente psicológico e também um componente espiritual. E, da mesma forma que a dor física pode ser tratada pelos recursos analgésicos da Medicina, essa outra dimensão da dor pode ser tratada. Não estou dizendo que é fácil, mas que ela pode ser tratada", analisa o professor de Bioética da Faculdade de Odontologia da USP (Universidade de São Paulo) Dalton Luiz de Paula Ramos.
A forma de se tratar não só a dor física, mas todas essas dimensões da dor psicológica, da dor de perda de sentido, é que a pessoa que se encontra nessa situação possa ser acolhida, possa ser amparada. Daí nós remetemos a questão não só à decisão da pessoa. Nós tiramos a questão do fulcro da autonomia de decisão unilateral da pessoa envolvida e trazemos a questão para a sociedade, para todos que estão em torno dessa pessoa, que são todos co-responsáveis pelo que acontece com essa pessoa. ? por isso que, em vez de uma eutanásia direta, que a gente condena, nós propomos os cuidados paliativos - recursos não só materiais (equipamentos, medicamentos), mas também humanos (a equipe de saúde para tratar da dor física, assistência psicológica, assistência espiritual, assistência familiar) que possam garantir a essas pessoas nessa situação de sofrimento a acolhida e o amparo que elas precisam para saber lidar com esse sofrimento em todas essas dimensões. Então, em vez de propor a eutanásia, vamos propor cuidados paliativos", defende Dalton Ramos.
Ele considera que a vida deve ser observada em todas as suas dimensões para ser plenamente compreendida e, assim, respeitada. "A vida se compõe de várias dimensões, como a saúde se compõe em várias dimensões. A saúde tem um componente físico e biológico. Mas ela também tem um componente psicológico, espiritual e moral, pelo menos. A gente poderia dizer que a saúde é alcançada se a gente respeita pelo menos essas quatro dimensões: a biológica, a psicológica, a espiritual e a moral. A partir dessa visão muito mais ampla do que é vida, a circustância de limitação no aspecto físico claro que tem o seu peso, claro que tem a sua dramaticidade, mas não pode ser a única dimensão pela qual eu justifico a dignidade da vida", avalia Dalton Ramos.
"A nossa concepção pública de Justiça está contaminada por concepções privadas de bem. Essa é uma fragilidade da nossa concepção de razão pública. Nós precisamos seriamente enfrentar o reconhecimento de que uma razão pública expressa na Constituição e nas nossas leis não pode deliberar sobre concepções de bem. E resquícios como estes de reconhecer que a eutanásia é um atentado contra uma santidade da vida ou contra um princípio de dignidade da vida e não reconhecer como única instância possível uma deliberação individual é um pressuposto de heteronomia do nosso processo decisório que está acentado em premissas particulares de concepção de bem que não são compartilhadas por todos nós", afirma Débora Diniz.
Mas há também a perspectiva relativa à eutanásia ativa, onde um agente externo provocaria a morte de uma pessoa em situação crítica. Este é um ponto bastante sensível da discussão, pois envolve fatores não só individuais, mas, às vezes, até aqueles que podem induzir a injustiças. "A gente pode começar a suspeitar de outros interesses (em casos de adoção da eutanásia). Interesses do sistema de saúde, que não é só o público, mas é também o privado, responsável por boa parte da assistência à saúde. Obviamente (este segmento) não tem interesse em um usuário de seus serviços que sabidamente vai a óbito daqui a um ou dois anos, que nesse último período de vida vai estar apenas custando, não gerando recursos", lembra o professor Dalton Ramos.
Dignidade
O caso de Terri Schiavo não é um modelo dos mais exemplares para alimentar as discussões sobre eutanásia. Afinal, tivesse ela consciência ou não de sua condição, ou, principalmente, tivesse sensibilidade física ou não ao sofrimento físico, ela foi deixada sem ser alimentada por treze dias, até definhar à morte. Foi esse um tipo de "boa morte" que caracterizaria o próprio termo eutanásia?
"Se nós fôssemos para uma análise técnica, e em alguma medida, também moral, veja o caso da Terri. O caso dela para mim é extremamente problemático, porque o fundamento nós não temos como saber, a gente não sabe a opinião dela. A gente tem dois relatos: um que diz que essa era a opinião dela e outro um clamor de cuidado. O caso da Terri é o pior exemplo para esse debate na esfera pública. Mas vamos considerar alguém que tenha se pronunciado na posição de Terri. Deixá-la treze dias sem comida e sem bebida? ? o pior tipo de morte possível. Então, no caso dela, um ato que acelerasse o processo da morte, você teria um respeito a sua dignidade e ao seu sofrimento e mesmo à sua vontade", avalia a professora Débora Diniz.
E acrescenta: "Se nós formos para uma racionalização do processo, a morte de Ramón (Ramón Sampedro, marinheiro espanhol que, tetraplégico, promoveu um batalha jurídica na Espanha pelo direito de ser assistido em sua morte, caso que deu origem ao filme "Mar Adentro") foi muito mais digna que a morte de Terri. Só que dentro de uma sensibilidade moral pública, a morte de Terri, por mais absurda que pareça, ou mesmo a do papa (lembrando que o papa João Paulo II, morto no último dia 2 de abril de 2005, teria optado por passar seus últimos momentos em seu quarto, no Vaticano, em vez de ser assistido em um hospital, onde os recursos para um eventual prolongamento de sua vida seriam mais eficazes) que foi muito menos sofrida - ele não teve a agonia dela no fim - elas são muito mais aceitas".
Para o jurista Gandra Martins, o caso de Terri Schiavo representou um crime. "O que os magistrados dos tribunais norte-americanos permitiram não foi eutanásia, foi um assassinato, por deixarem de alimentar Terri Schiavo. Fizeram o mesmo que era feito nos campos de concentração de Hitler, onde deixavam de alimentar os prisioneiros até sua morte", alerta o advogado.
Citado há pouco, o próprio caso da morte do papa João Paulo II vem despertando para a discussão sobre a eutanásia. Afinal, questionam alguns, qual a diferença entre a decisão do papa - de morrer em seu próprio quarto, sem o aparato de um hospital que poderia lhe propriciar uma eventual sobrevida - e a de uma pessoa que, diante da inexorabilidade da morte, peça para que seu sofrimento - físico ou psicológico - seja abreviado por uma ação externa, como o desligamento de um aparelho ou a aplicação de uma droga que induza à morte?
Para Dalton Ramos, a diferença está no momento em que a decisão é tomada. "O exemplo do governador Mário Covas (que morreu em março de 2001 em razão de um agravamento de um quadro de câncer e que teria decido ficar em um quarto normal de hospital para estar junto à sua família no momento da morte em lugar de ficar isolado em uma Unidade de Tratamento Intensivo) e o exemplo recente da semana passada do papa, em que momento é justo se dizer "não me levem para uma UTI, que eu quero permanecer no meu quarto para morrer junto a meus parentes, meus amigos"? ? quando essa ida para a UTI é totalmente ineficaz, não traria nenhum tipo de benefício", defende o professor da USP.
Já o médico Sérgio Zaidhaft podera um pouco mais sobre a situação de ambos: "Isso poderia se chamar uma eutanásia passiva, onde se sabe que, irremediavelmente, o quadro vai levar ao óbito e a pessoa, ou a família, ou os próprios médicos decidem que intervir é só prolongar o sofrimento. Isso no Brasil é uma situação polêmica que alguns podem considerar crime ou omissão de socorro".
Vê-se que, realmente, não há respostas conclusivas para classificar ou qualificar a eutanásia. A verdade é que, como se sabe de diversos exemplos, principalmente nos momentos de guerra, o exercício da preservação da vida, e da Medicina, por extensão, é também um exercício de tomada de decisões. Após uma batalha, um médico pode se ver à frente de vários pacientes necessitados de assistência e, por pura falta de recursos físicos, médicos e humanos, ter de escolher por aqueles que acha que terão mais chances de vida. Essas decisões ocorrem muitas vezes até mesmo na vida dos agentes de saúde de nossos hospitais, principalmente em um país tão carente de recursos como o nosso. Por isso tudo, é essencial que as pessoas entendam que uma discussão equilibrada sobre um tema tão complexo é essencial para que as pessoas e suas opiniões sejam tratadas justamente.
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